Ativistas dos povos indígenas brasileiros conclamam a academia a agir
Este artigo foi traduzido para o Português por Estela Cangerana. Para ler a versão original, em Inglês, click aqui: https://macmillan.yale.edu/news/indigenous-brazilian-activists-challenge-academia-act
Em junho de 2022, Dom Phillips, um jornalista britânico que trabalhava para o The Guardian, e Bruno Pereira, um indigenista brasileiro e funcionário da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), foram assassinados nas florestas do Vale do Javari, no noroeste do Brasil.
Phillips estava escrevendo sobre a miríade de crimes cometidos no Javari enquanto viajava com Pereira, que mobilizava as comunidades indígenas para patrulharem e protegerem suas terras dos criminosos que ilegalmente extraem madeira, pescam e caçam em seu território. Dois homens confessaram os assassinatos e vários outros foram acusados de envolvimento mais amplo, mas, dois anos depois, nenhuma data foi marcada para o julgamento e os ativistas ambientais indígenas continuam a ser mortos por resistirem à destruição de suas terras.
No dia 10 de maio de 2024, a Universidade de Yale, através do Conselho de Estudos Latino-Americanos e Ibéricos do MacMillan Center, da Escola de Meio Ambiente e da Escola de Saúde Pública, realizou uma conferência em homenagem a Dom Phillips e Bruno Pereira, com o tema “Crise de Mudanças Climáticas e Justiça Ambiental na Amazônia: Vozes de Povos Indígenas e Ativistas”. Co-organizado pelos professores Claudia Valeggia, Albert Ko e Gerald Torres, o evento reuniu acadêmicos que trabalham com direitos indígenas e justiça ambiental, além de ativistas ambientais e indígenas, advogados e jornalistas - muitos deles amigos dos dois profissionais mortos - com o objetivo de identificar um caminho a seguir.
“A justiça ambiental na Amazônia é crucial, porque aborda os impactos desproporcionais da degradação ambiental sobre as comunidades marginalizadas que vivem dentro e ao redor da floresta tropical”, disse Claudia Valeggia, professora de antropologia e presidente do Conselho de Estudos Latino-Americanos e Ibéricos de Yale. “Ao trazer líderes e ativistas dos povos indígenas para Yale, esperamos que esta conferência ajude a ampliar suas vozes e aumentar a conscientização sobre suas lutas, para garantir a justiça na alocação de recursos, direito à terra e acesso a ar e água limpos.”
Albert Ko, professor de Saúde Pública da cátedra Raj e Indra Nooyi na Escola de Saúde Pública de Yale, tornou-se amigo de Dom Phillips em 2019, quando o jornalista estava fazendo uma reportagem sobre a resposta do Ministério da Saúde do Brasil e de Yale à epidemia de Zika. “Queríamos homenagear Bruno e Dom, que personificaram o humanismo e o compromisso com a justiça necessários para corrigir as injustiças que ocorrem entre os povos indígenas na Amazônia”, disse Ko, que também é pesquisador colaborador da Fundação Oswaldo Cruz, do Ministério da Saúde do Brasil.
“A justiça ambiental também está profundamente ligada ao conceito de One Health, que reconhece a interconexão da saúde humana, animal e ambiental”, acrescentou Valeggia. “Vamos além das palavras, começar a ouvir e a nos unir aos especialistas indígenas na ação, como Bruno e Dom estavam fazendo.”
A Floresta Amazônica, também conhecida como Amazônia, compreende cerca de metade das florestas tropicais remanescentes do planeta e contém 20% da água doce em estado líquido do mundo. Estendendo-se por nove países e territórios da América do Sul, a Amazônia abriga mais de 400 grupos de povos indígenas, além de quase 20% das espécies de plantas vasculares do mundo, 14% de todas as espécies de pássaros, 9% de todos os mamíferos, 8% dos anfíbios e 18% de todas as espécies de peixes conhecidas.
A Amazônia absorve entre 150 e 200 bilhões de toneladas de carbono em seu solo e vegetação a cada ano, o que a torna um elemento estabilizador fundamental no sistema climático da Terra.
De acordo com João Biehl, professor de antropologia da Universidade de Princeton e diretor do Brazil LAB, os modelos climáticos atuais elaborados por seus colegas preveem que, sem a Floresta Amazônica, as temperaturas regionais subiriam a níveis que alterariam drasticamente os padrões de chuva e tornariam a área inabitável, causando estragos econômicos - especialmente para a agricultura e a produção de energia - que superariam em muito os retornos monetários imediatos que impulsionam o desmatamento. E não é só isso: as temperaturas médias em todo o mundo aumentariam aproximadamente 0,25 graus Celsius, tornando impossível atingir as metas do Acordo de Paris.
A proteção da Floresta Amazônica, explicou ele, é fundamental para manter a estabilidade climática na América do Sul e para mitigar os impactos das mudanças climáticas em todo o planeta.
A Amazônia vem sendo ameaçada há décadas - pela extração ilegal de madeira, queimadas e avanço da pecuária, caça furtiva, perfuração de petróleo, mineração de ouro e cobre e o consequente envenenamento de cursos d’água -, nos últimos 15 anos, 20% das florestas tropicais do Brasil foram destruídas. E alega-se, conforme Biehl explicou, que a violência contra a floresta e seus povos indígenas aumentou vertiginosamente no Brasil sob a presidência de Jair Bolsonaro, de 2019 a 2023.
“Cerca de 30% do território amazônico não foi legalmente designado e se tornou um paraíso para o desmatamento e a apropriação de terras”, disse Biehl. “O crime ambiental e as economias ilícitas estão entrelaçados. A região onde Dom e Bruno foram emboscados é conhecida por ser controlada pelo crime organizado.”
Jornalista brasileira especializada no tema, Eliane Brum, do portal SUMAÚMA, destacou o papel da corrupção no desaparecimento da Amazônia. “Talvez muito em breve, a Floresta Amazônica se transforme em um lugar onde o Estado não pode entrar, [porque é] completamente dominada por grupos do crime organizado. É [por causa disso] que Bruno e Dom perderam suas vidas, porque Bruno era uma das barreiras para o avanço do crime organizado”, disse ela. “A resistência está sendo morta na floresta e no Congresso brasileiro.”
Em suas apresentações, ativistas relataram o trabalho que estão realizando em organizações de base, na imprensa, nos tribunais e no recém-criado Ministério dos Povos Indígenas do Brasil.
Vários palestrantes também ampliaram a perspectiva para além do Brasil; eles falaram sobre as atrocidades que estão ocorrendo na Floresta Amazônica na Colômbia e no Equador, incluindo a degradação ambiental e o deslocamento forçado, a desapropriação de terras e o genocídio de povos indígenas que vivem em isolamento voluntário, como os Tagaeri e Taromenani, do Equador.
Um dos temas de maior consenso da conferência foi o apelo para chamar para o centro das discussões as vozes indígenas na luta para salvar a Amazônia - o mesmo trabalho em que Dom e Bruno acreditavam e pelo qual morreram. “A ciência ocidental tem um histórico de apropriação e supressão do conhecimento indígena. Só recentemente as contribuições indígenas foram reconhecidas como fundamentais para enfrentar os desafios trazidos pela atual crise climática”, disse João Biehl. “Nosso objetivo é desenvolver uma estrutura colaborativa para novos modos de conceituar a sustentabilidade na Amazônia.”
Entre os defensores dos direitos indígenas que falaram no evento estava Joênia Wapichana, presidente da Fundação Nacional do Índio do Brasil (FUNAI) e a primeira mulher indígena a ocupar esse cargo. Ela também é a primeira advogada indígena no Brasil e a primeira mulher indígena eleita para o legislativo, tendo recebido inúmeros prêmios, incluindo o Prêmio das Nações Unidas na Área de Direitos Humanos.
Como advogada e agora como presidente da FUNAI, ela falou sobre a importância de proteger as terras indígenas, de seguir as práticas de gestão dessas regiões e da luta para conquistar a demarcação legal, a regularização e a certificação de terras não reconhecidas.
“As terras indígenas estão entre as principais barreiras de combate ao avanço do desmatamento no Brasil”, afirmou. “Não há outra maneira de deter o aquecimento global a não ser implementar os valores e a legislação indígenas.” Os povos indígenas dependem de proteções territoriais para defender os recursos naturais dos quais o mundo inteiro depende, disse Wapichana. O desafio que ela tem pela frente como presidente da FUNAI é continuar a cumprir a obrigação do governo de garantir os direitos dos povos indígenas consagrados em Constituição e buscar aumentar a quantidade de terras indígenas protegidas, ao mesmo tempo em que defende a revogação de recentes decisões legislativas que podem violar a constituição.
Olimpio Guajajara, membro do povo Guajajara, que vive juntamente com outras etnias indígenas na Terra Indígena Araribóia, lidera um grupo de guardiões da floresta tropical, por meio de sua Associação Indígena KA’AIWAR. Na Araribóia, localizada no extremo leste da Floresta Amazônica, Guajajara e seus companheiros voluntários defendem suas terras de incursões ilegais de madeireiros em seus 72 pontos de entrada, às vezes com o custo de suas vidas.
“Araribóia tem a floresta que pode curar os seres humanos”, disse Guajajara. “É por isso que estamos lutando por esse território. Ele não é apenas uma parte de mim ou do meu povo; é também parte de toda a humanidade. Porque sem a floresta, não poderemos existir. Não haverá chuva… Meu povo - meus filhos, meus netos, meus bisnetos - vão querer beber água, vão precisar comer.”
Falando sobre sua missão na KA’AIWAR, afirmou: “estamos fazendo trabalho voluntário para toda a humanidade e continuaremos a fazer isso. Não há outro caminho a seguir”. Ele fez um chamado à ação: “O planeta inteiro precisa acordar”.
“Será que estamos usando nossa inteligência apenas para destruir nosso planeta?” perguntou Guajajara. “É essa a educação que queremos? (…) Com nossa inteligência, podemos mudar o destino de nosso caminho para um futuro melhor, para que as pessoas que virão depois de nós possam continuar a ter vida em nosso planeta”. Beto Marubo é membro do povo Javari e da organização indígena UNIVAJA, que patrulha o Vale do Javari para denunciar atividades ilegais. Marubo era um amigo próximo de Pereira; eles trabalharam juntos por 12 anos. Embora Bruno não fosse indígena, disse Marubo, ele acreditava que os povos indígenas tinham que ter poder para proteger suas próprias terras.
“Meu falecido amigo [Bruno] uma vez me disse: ‘Para o futuro de suas terras e de vocês mesmos, na verdade - não existe uma maneira perfeita para fazer, Beto. É por isso que temos que nos empoderar, e eu vou fazer isso mesmo que tenha que dar minha vida, porque eu acredito nisso’ ”, disse Marubo em meio às lágrimas.
“Ele nos treinou para ler GPS e fazer tarefas que ninguém nos ensinaria a fazer. Ouvi dizer que esta universidade tem as melhores mentes para o futuro. Não quero que vocês sejam apenas isso. Quero que vocês estejam comigo, como o Bruno Pereira e o Dom… O chamado que tenho para vocês: Ajudem-nos a explicar e passar para vocês o que sabemos.”
Contra o pano de fundo das batalhas legais em andamento no Supremo Tribunal Federal do Brasil, onde os direitos à terra indígena estão em jogo, Marubo disse que ele e seus colegas guardiões da floresta chegaram a uma decisão: “Respeitamos a FUNAI. Respeitamos o governo e suas leis, mas vamos fazer o que for preciso, em memória de [Bruno], que nos convenceu de que podemos ter um processo único para proteger não apenas a nós mesmos e nossa terra, mas também… os povos indígenas isolados em nossa terra.”
Em suas observações, Gerald Torres, professor de Justiça Ambiental na Escola de Meio Ambiente de Yale e professor de Direito na Escola de Direito de Yale, agradeceu a todos os participantes pela esperança que estava no centro de todas as suas mensagens. “Uma das lições que tirei do que ouvi hoje é que (o que aconteceu) reforçou o erro que os oponentes cometem”, disse ele. “Porque eles acham que, se silenciarem as vozes, vão parar o movimento. E isso está errado. Sempre foi errado.”
Alessandra Sampaio, viúva de Dom Phillips, conheceu e trabalhou em estreita colaboração com muitos dos ativistas devido à tragédia que compartilharam. Na conferência, Sampaio explicou que está promovendo o legado de Dom por meio da educação. Ela e uma equipe fundaram o Instituto Dom Phillips “com o objetivo de compartilhar o que é a Amazônia e suas complexidades, por meio dos povos da floresta, e buscar formas de garantir sua proteção”. O primeiro passo é uma plataforma digital que a equipe está construindo em colaboração com líderes indígenas para reunir e compartilhar o conhecimento dos povos da Amazônia.
Os amigos jornalistas de Dom - incluindo o palestrante Tom Phillips, um colega repórter do The Guardian - continuaram a chamar a atenção internacional para os horrores que se desenrolam na Amazônia e estão terminando o livro que ele estava escrevendo, How to Save the Amazon.
A conferência foi um chamado para que os participantes saíssem de suas “bolhas acadêmicas” e entrassem em ação. “Temos que falar além da universidade para causar algum impacto”, declarou Beto Marubo. “Por favor, nos ajudem. Precisamos de mais Doms e Brunos para agir!”
“Estamos vivendo uma crise climática. Temos que nos perguntar se estamos vivendo de acordo com essa emergência. E acho que não estamos”, disse Brum. “Hoje, ouvir é AGIR…. Nossas palavras precisam ter ação, porque o tempo está se esgotando.”
Essa conferência também foi co-patrocinada pelo Programa de Paz e Desenvolvimento do Yale MacMillan Center, pelo Yale Center for Environmental Justice e pelo Oscar M. Ruebhausen Fund da Yale Law School.
Autora: Michelle Fiestra, do Yale MacMillan Center.